21/02/2013 09:56
COMEDOR DE PAPA-TERRA que está concorrendo na promoção Autores da Caixa 2013 no site www.mundocaixa.com.br.
Caros colegas da Caixa
Solicito o apoio de vocês, ou melhor, os seus votos para o meu livro COMEDOR DE PAPA-TERRA que está concorrendo na promoção Autores da Caixa 2013 no site www.mundocaixa.com.br.
A referida promoção consiste em escolher os dez livros mais votados pelo público que acessa o site do MUNDO CAIXA para que sejam ali comercializados no Catálogo de Prêmios, com os pontos do PAR.
Depois de entrar com a senha o caminho é: GANHE MAIS – CAMPANHAS E PROMOÇÕES – AUTORES CAIXA 2013 – VOTE AGORA... (Eu estou na pagina 14).
A votação vai somente até 01 de março.
Só peço não deixarem pra última hora, sabem como é, né?
Conto com vocês e desde já agradeço
FELIX RAMOS DE MENESES
035787-7
RAMAL 1272
PS.: Se possível, divulguem ao colega mais próximo.

Biografia.
Felix Ramos de Meneses nasceu em Mara Rosa – GO, em 23.03.61, num local chamado Fazenda Fanha (que hoje pertence ao município de Alto Horizonte, antes um distrito). Estudou até os nove anos em escola de fazenda, depois foi pra Uruaçu, onde estudou nos grupos escolares Bernardo Sayão e Coronel Gaspar; da quinta à oitava estudou no Colégio Alfredo Nasser; já o segundo grau, foi no Colégio Castelo Branco, em Mara Rosa.
Ingressou no Instituto de Artes da UFG em 1980, onde cursou Artes Visuais, que concluiu no final de 1984. Morou na Casa do Estudante Universitário, a CEU-GO, onde fez muitas amizades.
É empregado da Caixa Econômica Federal desde 1989. Junto com a atividade de pintor, manteve sempre a sua produção literária, mas que só agora vem exercendo com a devida disciplina.
Daí surgiu o Comedor de papa-terra, concluído em junho e premiado em outubro de 2004, na Bolsa Hugo de Carvalho Ramos, mas que, por um atraso sem precedentes no pagamento dessa premiação, só foi publicado em junho de 2008.
Também em 2004 o livro Comedor de papa-terra recebeu menção honrosa no Concurso Nacional de Literatura do SESC.
Em março de 2010 foi publicado o livro de contos Matador de onça pela coleção Goiânia prosa e verso de Prefeitura de Goiânia.
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COMEDOR DE PAPA-TERRA é a estória de Verediano, um caipira apaixonado por pescaria, tido na região como conhecedor de todas as manhas dos peixes. Com o aumento da fiscalização e mesmo pela própria mudança de consciência, ele resolve não mais pescar com rede ou tarrafa. Percebe, então, que não consegue ficar sem comer ou pescar papa-terra, peixe que não se pega de anzol. Quando as águas do Rio dos Bois mínguam e vão aparecendo as areias brancas, baixam nele os sintomas da abstinência: febres, tonturas, náusea e alucinações. Nos sonhos, Benedito de França, um pescador quase lendário da região, aparece e conta fascinantes estórias de antigas caçadas e pescarias. O drama de Verediano em sua luta interna marca a estreia de Félix Ramos, que escreve em estilo bem pessoal a fala regional. É uma oportunidade de viajar pelo universo sertanejo em transição do final dos anos 90, conhecer as pessoas de um lugar e seus costumes, superstições, e relações de amizade, simplicidade e amor à terra, à natureza e ao seu Rio dos Bois.
Dados técnicos: Romance, Editora Kelps,
176 páginas 2ª edição 2010
1
Aqui não sou nada, sou um zero. Sou só um cabra deslocado, doido pra pegar a primeira carona e voltar pra lá, pra roça. Aqui na cidade meu movimento é pouco, feito vaca no tronco. Eu lido mal com as coisas da cidade. Bem dizia o Badio, lá das bandas do Ribeirão Sombrio, que gente da roça só vai à cidade pra chupar picolé e passar vontade de mijar.
O motivo meu de estar aqui foi uma desavença com uma novilha sestrosa, raça das curraleiras do Velho Martiniano, bisavô meu de criação, há muito falecido. Foi só um descuido meu no canto do curral, na hora de curar uma bicheira, que ela aproveitou e me prancheou na cerca de lascas de aroeira. O gesso é por causa de um trincado no osso do braço direito. Coisa de mais uma semana, no máximo. Aproveito esses dias pra dar uma olhada no papel e no imposto atrasado da terra.
Agora, se quiser me conhecer, me dê licença. Pegue a estrada de Alto Horizonte e não pare lá. O mundo que é meu fica depois, é só andar mais umas cinco léguas de chão vermelho. Lá tem uma serra – a do Fanha - que olha o descampado em volta. Lá embaixo passa o Rio dos Bois. Rio esse que eu aprendi a amar como a um ser vivente. Quando o senhor tiver me ouvido, vai me entender.
Das coisas boas da vida, que eu sei, uma delas é pousar na beira do rio, mesmo que não dê peixe. O senhor não sabe o que é abrir os olhos debaixo da palha rancho de folhas de arcuri e ver depois da areia a neblina que sobe da água do rio. Essa visão me enche o peito, principalmente nas primeiras vezes que o rio dá praia. Logo um colega mais animado levanta e retoca o fogo e dá pra fazer o café. Fogo bom é com lasca de angico. Aí uns outros vão se levantando e é logo que a animação vai tomando conta de novo, antes mesmo do sol nascer. Risada de amigo é coisa boa de se ouvir. Risada de amigo e canto de sabiá.
No tempo do meu pai não se comia papa-terra. Diziam que tinham gosto de terra. Eu acho que têm mesmo. É um gosto diferente dos outros peixes. Além do mais, no tempo do meu pai não tinha tarrafa, nem rede. E essas bichonas não são peixes pra anzol. Deve ser por isso que ainda hoje, com tanto estrago, elas ainda dominam o rio. Tem gente que não dá valor à papa-terra pelo cheiro, outros até acham gostosa, mas embaraçam com os espinhos. Mas garanto que, pra mim, não tem pintado nem pacu que me faça dispensar a papa-terra.
Amigo era Joaquinzão. Dava gosto ver ele falar. Contava muita coisa do pouco que viu. Do muito que observava nelas. E falava das coisas que ouviu falar. Remedava os mais velhos de um jeito engraçado. Estórias antigas, muitas de assombração. Do jeito que Joaquinzão falava, eu gostava mesmo era da ternura que ele punha nas pessoas, nos rios, nos paus. O senhor precisava conhecer Joaquinzão. Ia contar coisas de mim melhor que eu conto.
As derradeiras chuvas são de março, em abril é difícil chover. De todo jeito, o rio já está mais baixo. A chuva vem e suja o rio. Mas logo limpa e começa o vento a soprar. É tempo em que a passarada nova já juntou as penas. Tem muito passarinho novo nos cerrados. É festa nos ouvidos da gente. Da porta do rancho, fico olhando a festa do vento nas palhas da macaúba e as rolinhas fogo-pagou catando coisas junto ao manco da porteira.
O cerrado é uma escola pra gente. A mata é a mata, a terra é boa, bichos grandes se escondem lá. Mas no cerrado tem mais tipos de bichos, mais tipos de paus, de frutos, mesmo de flores. Pau do cerrado é pau pequeno, tortuoso, mas é tanto tipo diferente. Difícil andar sem ver siriema correndo na frente da gente ou veado saltando assustado. Passarinho tem toda hora.
Já pensei algumas vezes. Se me deixassem no cerrado sem comida ou arma para caçar, eu não passava fome. Dos cajuzinhos de agosto às goiabinhas de fevereiro, tem tanta fruta no cerrado que eu nem sei o nome de todas. As que mais gosto são os cajuzinhos, as mangabas e o murici. Tem um tempo, que vai de abril a julho, que quase não tem fruta. Mas, mesmo em abril, com pouca fruta, ou na seca brava de julho a agosto, quando você vê que não tem mais frutas, aí tem os cocos. Os pindobas, os arcuris e o tucum. Que dão coco e dão palmito. Tem raiz que dá pra gente comer, sei de umas três. E tem os barus. O cerrado é rico; a gente é que não sabe.
Olha, tem uma coisa que eu aprendi. Aqui na roça não adianta correr com o serviço, que serviço não acaba. A ciência é ir tintiando, acudindo as urgências. Serviço de fazenda já fiz quase todos. Tirar leite, tocar boi, colher milho, bater arroz em dia de muita chuva... Já sofri muito por essas beiradas. Já fiz serviço de cavalo, e, sendo preciso, não fujo da dureza, que, graças a Deus, saúde nunca me faltou. Mas aprendi uma coisa: vale a pena não. Quanto mais a gente esperneia, mais a vida desanda. Por isso que maneirei a marcha.
O senhor é instruído, vai me entender. A boniteza nem sempre depende de dinheiro, de grande preparo. Devagar a gente vai aprendendo que o destino faz a graça do momento. Mas que, com jeito sorrateiro, a gente pode perseguir o que há de bonito. É como eu digo, esse vento que dá nas palhas do macaúba faz ele parecer com os cabelos de um gigante de movimentos suaves. Uma nuvem branca com partes mais acinzentadas lá por detrás do morro. A gente daqui não para olhar essas coisas. Joaquinzão, esse parava. É que o bonito vem às vezes de traição e nos enfeitiça.
Nesses tempos de muito mosquito, a beira do rio está infestada. Pego a vara, umas minhocas, e levo esterco seco de vaca. A fumaça do esterco espanta os mosquitos. Tem gente que fuma. De fumar eu não gosto, já uns dedos de uma cachacinha, isso eu aprecio. Pescar tem um pouco de sonho. A cachaça ajuda a embalar. Aí a gente pesca bagre e sonha com pintado.
Quando era pequeno lá no Fanha, diversão nossa era diferente das de hoje. Pescar, montar cavalo, subir em pau, pegar fruta, caçar passarinho, remar canoa, banhar no rio, balanço, pião, criar filhote de periquito. Para aprender a nadar, bom era engolir um peixinho vivo. Pequeno, gostava de olhar o chão. As vidinhas pequenas que há no chão. Formigas carregadeiras faziam trilhos, eu seguia pra ver até onde iam. Serpenteavam entre arbustos, passavam por entre as lascas da cerca velha de aroeira, iam pelo cerrado até chegar nos formigueiros de boca grande de terra vermelha. Outras vezes, eram os gongolôs, comaquela infinidade de pernas. As lesmas, os caracóis...
Uma vez meu irmão Divino disse para minha irmã que, se o gongolô pegasse alguém, era morte certa. Só não se a pessoa contasse certinho quantas pernas ele tinha. Joana ficou calada, com medo, tinha acreditado. Um dia, pegamos ela tentando contar as perninhas de um deles. Com uma varinha, tinha virado ele de barriga pra cima. Tarefa difícil! Que jeito, contar pernas tão finas, que mal se vê, de um bicho que ela achava tão venenoso?
Meu pai é um goiano do pé rachado. É filho de gente antiga da região. Quando perguntavam de onde descendia minha família, meu pai respondia: Sou descendente de goiano, ora. De pai e de mãe. Verdade que o Mendes mais antigo que eu tenho notícia é o bisavô do meu avô. Chegou no Pilar aí pelos idos de 1800. Aí o senhor sabe, família que finca o pé por tanto tempo na mesma região passa a ser parente até de quem não é. É a tal da consideração. Parentesco confundido com amizade. Sempre teve um negócio da gente pedir benção pra uma infinidade de gente sem saber bem por quê. Eramparentes, ora.
Agora, se o senhor quer uma alma doente por parente, é meu irmão Euzébio. Sabe explicar direitinho o parentesco da gente, sem errar os galhos da parentaiada. Não que meu pai não gostasse de parente. Euzébio é que gosta demais. Quem quiser fazer um livro, um mapa da família, é só falar com ele. Ah...! E ainda sabe de boa parte das outras famílias da região.
Bola de criança no meu tempo de menino era uma bolinha pequena de borracha. Era pesada, pulava muito e sapecava a gente. Pequena, qualquer buraco mudava de rumo. Isso quando tinha bola. Bola certa mesmo era de lobeira. Pegava a fruta no pé, machucava os espinhos, estava pronta a bola. No começo era dura. Machucava os pés. Era tratada com cuidado pelos pés descalços. Quando ficava meio murcha, ficava mais macia. Não pulava, mas tinha peso, ia mais no rumo certo.
Acompanhei quando pequeno a aventura que foi meu avô Inácio Mendesfazer a casa dele. Tempo que era difícil passar carro na estrada. Só carro de boi. Isso tinha muito por lá. Qualquer fazendeiro, por pequeno que fosse, tinha o seu. Fez tijolo, fez telha, tudo lá, dentro das terras dele. Três olarias diferentes para tijolos e uma para telhas. Faz já agora uns bons anos que trocaram as telhas da velha e grandiosa casa por telhas francesas, mas boa parte das velhas telhas ainda resiste na cobertura do paiol e da casa do monjolo. Foram anos juntando material. O bom das olarias era na seca, entressafra das roças. Muitas vezes fui lá, acompanhando meu pai, que foi um dos seus ajudantes, tanto nas olarias quanto nas serrarias.
- A casa de papai foi feita às missas pedidas - disse meu tio Tonico Mendes.
Demorou, mas ficando pronta, era muito bonita. Grande, de telhas claras coloniais, de paredes azuis claras e janelas de azul marinho. As portas e janelas da frente tinham uns detalhes que pareciam almofadas, feitas pelo Vovô mesmo. Coisa bonita de ver. Quando se mudou pra ela, meu avô puxou uma folia do Divino, que teve mais de trinta pousos. Ele era o alferes. Ainda lembro dele aí passando dos sessenta, magro, sobre o lombo do burro Estrela, carregando a bandeira cheia de fitas coloridas.
Lembro bem que as paredes da casa eram de um azul muito parecido com o do céu, que vi passarinhos, coitados,a esborrachar nelas. Caíam mortos. Vi isso mais de duas vezes. Depois parou de acontecer. Não sei se o azul foi ficando lavado ou se foi a passarada que aprendeu mesmo por si.
Dizem os mais velhos que no passado, antes de 30, a Tiúba teve bem mais casas do que quando eu era pequeno. E mesmo em eu pequeno tinha mais casas do que hoje. Quando dei por gente, eram umas seis, sete casas. Tio Bartolomeu, Cunducha, Joaquim Barbosa, João da Silva, Romãozinho Preto e mais um ou outro peão que ficava por pouco tempo. No começo, o amontoado de gente era pra proteger as famílias dos perigos do sertão. Índios, um possível desertor, uma chusma de ciganos ou mesmo algum saqueador violento nesse mundo ermo. Teve até uma venda de movimento.
Quando hoje passo pelos baldrames da velha casa do Tio Bartolomeu, onde hoje ainda mora sua irmã Elvira, bate uma saudade grande. Parece que vejo Romãozinho Preto, pretinho velho que pegou escravidão no tempo de menino. Dizem que morreu com mais de cem anos. No canto da sala, parece que ainda vejo Aristeu, o bobo mais velho e mais zangado que já vi. No canto que a casa faz com a cerca da frente, onde hoje o mato toma conta, quase chego a ver as roseiras bonitas de Cunducha, os galhos querendo entrar pela janela, com flores de toda cor.
Na minha região todo mundo amava a Tiúba. Pra mim, pra gente de antes de mim, a Tiúba significa saudade. Saudade do largo limpo, de vassourinha roçada baixinho com capricho, onde um bando de crianças saía solta logo pela manhã. Saudade das mangueiras, as mais velhas que eu vi na região, a gente ia longe no tempo da manga. Haviam pés de café nos quintais debaixo das arvores maiores. Nunca morei na Tiúba, mas é como se tivesse morado. Meu pai morou lá até os primeiros dez anos de casado. Até quando se casou, minha mãe morava no Fanha, do outro lado do Rio dos Bois, e também ia muito nos tempos de menina à Tiúba, por causa dos parentes. Cunducha era madrinha dela.
Severiano, meu primo, sentado comigo um dia destes, que também não morava muito perto, falou que passava sonhando a semana que seu pai falava que ia à Tiúba no sábado. Falava com um brilho de saudade nos olhos. Quase chorou. Muita saudade que tenho é de partes que me contaram. Das coisas que os mais velhos viveram. Lembro de quando a criançada descia a ladeira rumo ao córrego, ladeado de jasmins, flor que eu só conhecia na Tiúba, e desatava a correr vereda abaixo. Tinha muita criança naquele tempo.
Quando eu era pequeno, talvez não houvesse mais gente nas roças do que hoje. Mas as pessoas moravam lá. Não era como hoje, que as estradas são boas, quase todo mundo tem pelo menos uma moto. Moto tomou o lugar de cavalo. As pessoas vêm trabalhar, mas voltam pra cidade à noite. As fazendas incham de dia e murcham de noite. À noite, o movimento é na Chapada, Garimpo e Nova Iguaçu. Pouca gente nas roças pra ouvir o agouro mãe da lua, à noite.
No eu falar o senhor vai me perdoando. Chapada que eu falo é Alto Horizonte e o Garimpo é Campo Verdes. As outras cidades eu falo os nomes certos, mas estas duas eu falo é pelos apelidos, do mesmo jeito dos amigos.
Com seis anos foi que comecei a freqüentar escola. Meu primo Antonino se casou com uma moça da cidade, moça estudada, que resolveu ser professora na Tiúba. Num lugar a meia légua da Tiúba Velha, perto do rio. Havia o rancho da escola, sem paredes, a casa do Antonino, feita de adobes e os dois ranchos de pau a pique onde moravam os filhos do Teófilo e os do Laudelino. Num, ficavam as moças, que eram cinco; noutro, os rapazes, um bando deles. Tirando a escola, havia pouco o que fazer. Muito de vez em quando o Antonino requisitava as crianças pra algum serviço, isso os mais velhos. No mais, era alforria. E pra nós, mais novos, todo dia era mesmo de ficar à toa. Foi nesse período que aprendi a ler e escrever. Mas não sabia que gostava.
Foi nesse tempo que conheci bola de capotão, a bola oficial. Juntou povo, fez um campo de terra vermelha, na base do machado e do enxadão, perto da casa do Velho Gonçalves. Uma vez acertaram uma bolada de nada na minha cabeça que me jogou a dois metros, caí chorando. Mas, a tal de bola foi ver e gostar. Lembro também da primeira mulher de shorte que vi, a Josefa do Gonçalves, que todo mundo achava muito esquisito.
Foi também aí que conheci leite em pó. Um dia chegaram umas caixas de papelão, era a merenda escolar. Olha só, vê se o senhor me explica. Como é que naquele tempo de estrada ruim, aquilo vinha de tão longe em cima de caminhão, frete e tudo, pra um lugar que o leite era despejado pra porco, tanto que sobrava.
Foi nesse período que perceberam que eu gostava de sonhar, de tanto me verem escrever ou desenhar no ar com a ponta do dedo.
2
O Senhor precisa conhecer o Cabaquerê. É uma curva de rio com a praia mais comprida dessas beiradas. Na seca, o rio lá deve ter coisa de uns vinte e cinco metros de largura. A praia, que fica pelo lado da Tiúba, deve ter uma vez e meia essa largura. Depois da praia, fica uma baixada com jauzeiros altos, que ficam floridos boa parte da seca. Por baixo deles fica limpo. É onde às vezes passa o gado que vem beber água no rio, é onde as vezes param para descansar na sombra mais limpa. Depois da baixada, vem uma capoeira fechada e, depois, os pastos do meu primo Antonino. Já do outro lado do rio, do lado que é Fanha, fica uma baixada mais larga. É terra de Liziário. Isso aí é pra criar capivaras, diz ele. Por ele, a baixada vai ser sempre aquilo. Não é só capivara que dá. É muito tipo de bicho.
Já dormi não sei quantas vezes na sombra daqueles jauzeiros e tudo que vi e ouvi é coisa que a gente vê e ouve mesmo, nada de diferente. Mas, desde pequeno, cresci ouvindo estórias de assombração que gente mais velha tinha visto. Mais de uma vez, mais de uma pessoa teve a mesma visão. Coisa difícil de duvidar. Ti’Dorico, irmão de criação de meu avô, viu uma boiada atravessando o rio umas cinqüenta braças acima. Os peões, os gritos dos peões. O berro do gado e, principalmente, o barulho das reses na água. No outro dia foi lá e não tinha nem rastro. Uma vez Liziário ia descendo o rio caçando capivaras e viu sentado num pau na praia um velho com uma barba de mais de palmo. Os olhos, fixos no chão. Junto dele não tinha luz acesa, nem fogo, nem lamparina, nem lanterna, nada. Mas tinha um meio clarão em volta dele. E teve uma vez, lá no passado – meu avô Inácio Mendes contava o que viu com mais uns três– que veio uma canoa, sem remador e coberta por uns panos e umas flores, tudo branco, que nem um caixão, e foi descendo devagar até sumir na curva do rio.
Uma vez, chegaram três homens na Tiúba, vindos de longe, disseram que eram lá das bandas do Crixás. Eu tinha uns sete anos. Vinham em três cavalos e um burro com as cangalhas de mantimentos. Na casa do Antonino, perguntaram onde era o Cabaquerê. Disseram que vinham desenterrar um ouro que um deles havia ganhado num sonho. O lugar era o Cabaquerê. Não sei se o senhor sabe, mas, pelas muitas que já escutei, ouro dado em sonho tem que ser desenterrado à noite, com a companhia só de mais um. Diz que pode aparecer alguém com o rosto encoberto pra mostrar o lugar. Que costuma ter espinhos, formigas e marimbondos, insistentes como a gente não conhece, e que as corujas e as outras aves da noite ficam cantando agouro o tempo todo. Prova pra quem tem espírito forte. Nos buracos, se encontra carvão, muito carvão. Isso tudo sei pelo que me contam, de gente que também nunca viu, mas que ouviu de outros. Eu, graças a Deus, nunca vivi isso.
Os homens preferiram arranchar na vereda, disseram que iam esperar a noite de sábado, o dia marcado, passagem da lua nova para crescente. Antonino disse que ficou curioso. Andou visitando o acampamento em horas mais discretas, pela manhã. Só que sábado de manhã, quando cismou de ir levar lá umas laranjas, encontrou só os vestígios do pouso. Já tinham ido embora. Foi até o Cabaquerê e lá encontrou uns cinco buracos no meio da capoeira, próximos de uma gameleira velha. Dois deles eram mais fundos e num deles havia cacos de um pote de barro. Ninguém mais deu notícia deles. Depois disso, nunca mais se ouviu falar de assombração no poço do Cabaquerê.
Agora, lugar bonito, um dos mais bonitos da minha infância, era a Vereda das Araras. Era feita de vários braços de córregos na baixada plana onde se viam muitos buritizeiros. Os fios d’água eram azulados por causa da cor do barro e corriam pelas vargens brejadas de capim agreste baixo. Antes dos desmatamentos feitos com trator, que desbastaram muito dos cerrados, era o maior lugar limpo que tinha por ali. Era lugar mais certo para ver emas, lobos e veados galheiros e outros bichos que gostam dos lugares descampados. A gente costumava passar muito por lá, pra ir lá no Fanha Velho, onde morava Tio Horácio. No tempo das chuvas, as patas dos cavalos tocavam os trieiros alagados, espanava água pros lados. Os trilhos do caminho pareciam riozinhos pequenos. Eu sonhava. Dava vontade de parar ali pra brincar. Achar onde minava, depois seguir aqueles fios d’água e ver até onde iam dar.
E tem a Serra do Fanha, lugar onde à noite a onça pintada esturra! Brabeza feita de torrão e pedra como que amontoada no meio do chapadão. Imensidão de morros querendo encostar nas nuvens. Arranjos de pedras escuras e enormes, vales, gargantas e furnas onde os lobos e as onças vão se esconder.
Quando pequeno, a serra era aquela tira ondeada de um azul um pouco mais escuro fazendo como que a barra do céu. Aonde eu ia – e eu não ia muito longe naquele tempo! – ela estava lá onde o azul do céu encosta no verde das árvores, dos campos e dos morros mais baixos. O menino achava que a Serra do Fanha se via de qualquer parte do mundo. Depois foi que percebi que a distância é que fazia ela ficar azul.
Mais tarde, andei com meu pai e meus tios campeando gado arribado pelos pés da serra. A gente só ia até onde se ia a cavalo. Até que, mais crescido, teve um dia que de fato subi a serra. Vi que lá tem uns tipos de planta diferentes das de cá. Foi preciso deixar os cavalos por causa do tanto de desbarrancado e de pedra desigual. Ver mesmo eu não vi onça nenhuma, mas rastros vi, e o lugar parece que foi mesmo feito pro sossego delas.
Ainda hoje, quando viajo pra longe do Fanha – que nem agora – é o desenho da serra, feito o lombo uma anta descansando, que mais espero ver. Só quando vejo a Serra do Fanha é que sinto que estou mesmo perto de casa.
O Garimpo é uma cidade diferente das outras cidades da região. As outras, Campinorte, Nova Iguaçu, Chapada e Amaralina são cidades que nasceram de povoadinhos pobres que foram crescendo sem perceber, até chegar no que são. Lembro que em julho de 80, eu voltava do Guarinos, vinha na carroceria da camioneta de Tio Sebastião. A gente dormiu junto à ponte do Rio do Peixe, dentro de um pasto. Capim jaraguá, assa-peixe e aroeirinha. Tio Sebastião era fiel ao Guarinos e ia todo ano, a vida toda com seu carro de boi. Agora tinha comprado camioneta. Mas não estava muito satisfeito. Era a saudade do carro e dos bois, aquelasviagens que duravam três dias, até mais. A saudade dos pousos. Ah... Os pousos! Por isso que, mesmo de camioneta, não abria mão de dormir pelo menos uma vez na estrada. Na ida e na vinda. Tinha que ter a barraca de lona e conversa em volta do fogo. Fizesse o frio que fizesse. Lembro que nós, os cinco rapazes, dormimos agarrados um no outro, tal era o frio da baixada e a nossa falta de agasalho.
Naquele tempo era só o Rio do Peixe, a ponte de madeira e a estrada de terra vermelha cortando o estradão. Logo depois dali é que ficava o trecho pedregoso onde um patroleirosolitário retocava a estrada na dureza das pedras brancas e começou a achar umas mais enverdeadas. Três dias depois eram duas, três mil pessoas, um formigueiro de gente em volta do lugar, cordas demarcando os lotes, e já tinha gente tirando pedras. No começo elas apareciam na flor da terra.
No começo, o garimpo era de todos, as esmeraldas davam no raso. Muitos lotes enriqueceram seus donos da noite para o dia, sem ter quase despesas. Depois, foram tendo que ir mais fundo. Primeiro, dez, vinte metros; depois, cinqüenta, cem metros. Hoje tem cata
com mais de cento e cinquenta metros de fundura. Depois dos setenta ou cem metros, uma mina já passa a ser coisa de gente boa das pernas, requer muita despesa. Aí que as empresas de engenharia passaram a se interessar.
Aqui na região, seu moço, nunca vi morrer tanta gente como morreu no trecho do Garimpo. Nunca foi proibida a presença de mulheres, como em geral acontece nos garimpos. O senhor sabe bem por quê. No começo, até se proibiu bebidas. Passou uns anos assim, mas depois liberaram. Mas, mesmo com a bebida proibida, a mortandade de gente foi grande. De dia morriam os homens soterrados, vítimas de gases, dos desmoronamentos e de todo tipo de acidente de trabalho. Tinha até afogamento lá dentro do chão. Esse negócio de segurança no trabalho e sindicato era coisa que não existia. Morrer no trabalho, principalmente para quem entrava naqueles buracos, era coisa muito suscetível. De noite, morriam nos cabarés, nas esquinas, nos bares vizinhos onde tivesse cachaça. Muitos corpos foram estripados pelas peixeiras baianas. O povo aumentou. Levas de baianos cruzaram chão que não foi pouco, nas carrocerias de caminhões paus-de-arara, trazendo pouco mais que uma sacola de pano. Mas vieram também garimpeiros experientes lá do sertão da Bahia, região de Campo Formoso, com fortuna já feita. Outros, com ela já desfeita.
Muita gente daqui ganhou dinheiro ligeiro. Mas a maioria acabou ficando pobre de novo, não soube segurar. Dizem que dinheiro de garimpo é amaldiçoado: o que vem fácil, fácil vai embora. Dos meus parentes, a maldição só não pegou foi Dé Barbosa, que foi ganhando devagar e aprendendo a segurar.
Nunca fui muito de abeirar o trecho. No começo, até achei que podia ganhar algum dinheiro por lá, mas bastou perder de jeito fácil uns poucos trocados ganhos com muito suor pra eu ver que esse negócio de pedra não está em mim. Não sou bom pra negociar quase nada. Mas estória já ouvi muita. De gente que tinha só a roupa do corpo e ganhou dinheiro de comprar fazenda numa simples gambira.